Saturday, October 11, 2008

O Horror

Se alguém pudesse vê-lo, sentiria o terror frio que as feições do menino maltrapilho demonstravam. Algumas dezenas de metros à sua frente, a multidão se aproximava, e nela ele reconhecia as pessoas da caravana. Mas seus rostos estavam diferentes, mudados, distorcidos, como se suas emoções tivessem sido apagadas de suas mentes. Andavam num ritmo estranho, despassado, atraídos por alguma coisa que não conheciam, e mesmo assim desejavam. Seus corpos também não eram mais os mesmos. Estavam magros, definhados, ossudos e sem músculos.

Era uma multidão cadavérica, faminta, silenciosa e desafiadora.

O menino não teve muito tempo para pensar, nem para gritar. Se pudesse, choraria, cobriria os olhos e pediria a seres superiores que o acordassem deste sonho ruim. Mas ele não podia, não conseguia esboçar nenhuma reação. Lentamente ele se levantou, colocando a mão esquerda na raiz da árvore, se apoiando com as forças que restavam. De forma automática, levantou o braço direito, quase um aceno, e colocou a mão direita sobre a nuca. Sua mão estava gelada, e seu pescoço, ardente, contrastando com o suor frio que encharcava seus cabelos emaranhados. Sentiu o próprio corpo negar os comandos de seu cérebro, e caiu de joelhos no chão. Seus joelhos, agora podia ver, estavam pontudos, salientes; a pele apenas um celofane protegendo a mísera camada de carne até o osso. Suas coxas estavam arqueadas, e suas mãos, pousando sobre elas, pareciam feitas de plástico, enrugadas e ásperas. Olhou para o umbigo, um pequeno bolo de carne no deserto fundo que era seu abdômen. Os mamilos, negros e enrijecidos, acusavam o medo frio que ele sentia. Com espanto, ele pensou em quando esta transformação tinha ocorrido, como ele não se reconhecia, onde ele tinha estado.

Se alguém pudesse ver o menino maltrapilho, acharia que ele era um velho sórdido, corrompido pelo mundo, cruel mesmo sabendo-se abandonado. Esse alguém não sentiria pena. Você não seria solidário. Veria nele tudo o que não quer se tornar.

As pessoas da caravana estavam bem próximas agora. O menino podia sentir o hálito coletivo que emanava daquelas bocas ofegantes. Tomado de horror e ao mesmo tempo aceitando seu destino inevitável, ele se levantou, rangendo os ossos, e esperou ser devorado. A dor seria a última fronteira, avisando que a vida se esvaía, mas confirmando que ainda havia alguma coisa a ser sentida. A dor avisando que estamos vivos. Eles rasgariam sua pele com unhas e dentes, puxariam seus cabelos sujos e desalinhados, arrancariam os olhos de suas órbitas, revelando veias e artérias, sugando o pouco de sangue que restava no corpo do menino maltrapilho. E ele esperava que o banquete caótico durasse muito tempo, o máximo de tempo possível. Só assim ele se limparia, morreria sem arrependimentos, sem medo, sem pecados. Abriu os braços e se entregou.

A multidão chegou. Com os olhos fechados, o menino sentia a presença de todos aqueles fantasmas, demônios e espectros ao seu redor. O bafo quente, os sons ininteligíveis, o arrastar dos pés na terra seca, o cheiro de ausência. Eles o estavam cercando, talvez para impedir com que ele fugisse, ou talvez para que todos tivessem acesso a um pedaço do seu corpo. Ele tremia.

Naquele momento, mesmo sem saber quais tinham sido as circunstâncias e os detalhes que o levaram até ali, o menino aceitou seu destino. E essa aceitação lavou sua alma. As razões não mais importavam, as consequências eram meros resultados de atos esparsos. Uma sequência de ações, muitas sem sentido, a maioria absoluta longe do controle dele. Não mais importava quais teriam sido as intenções dos outros. Para ele, o presente era tudo que existia. Livre de culpa, e finalmente entendendo-se sozinho e dono de seu presente, nosso menino maltrapilho abriu os olhos.

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