O Horror
Era uma multidão cadavérica, faminta, silenciosa e desafiadora.
O menino não teve muito tempo para pensar, nem para gritar. Se pudesse, choraria, cobriria os olhos e pediria a seres superiores que o acordassem deste sonho ruim. Mas ele não podia, não conseguia esboçar nenhuma reação. Lentamente ele se levantou, colocando a mão esquerda na raiz da árvore, se apoiando com as forças que restavam. De forma automática, levantou o braço direito, quase um aceno, e colocou a mão direita sobre a nuca. Sua mão estava gelada, e seu pescoço, ardente, contrastando com o suor frio que encharcava seus cabelos emaranhados. Sentiu o próprio corpo negar os comandos de seu cérebro, e caiu de joelhos no chão. Seus joelhos, agora podia ver, estavam pontudos, salientes; a pele apenas um celofane protegendo a mísera camada de carne até o osso. Suas coxas estavam arqueadas, e suas mãos, pousando sobre elas, pareciam feitas de plástico, enrugadas e ásperas. Olhou para o umbigo, um pequeno bolo de carne no deserto fundo que era seu abdômen. Os mamilos, negros e enrijecidos, acusavam o medo frio que ele sentia. Com espanto, ele pensou em quando esta transformação tinha ocorrido, como ele não se reconhecia, onde ele tinha estado.
Se alguém pudesse ver o menino maltrapilho, acharia que ele era um velho sórdido, corrompido pelo mundo, cruel mesmo sabendo-se abandonado. Esse alguém não sentiria pena. Você não seria solidário. Veria nele tudo o que não quer se tornar.
As pessoas da caravana estavam bem próximas agora. O menino podia sentir o hálito coletivo que emanava daquelas bocas ofegantes. Tomado de horror e ao mesmo tempo aceitando seu destino inevitável, ele se levantou, rangendo os ossos, e esperou ser devorado. A dor seria a última fronteira, avisando que a vida se esvaía, mas confirmando que ainda havia alguma coisa a ser sentida. A dor avisando que estamos vivos. Eles rasgariam sua pele com unhas e dentes, puxariam seus cabelos sujos e desalinhados, arrancariam os olhos de suas órbitas, revelando veias e artérias, sugando o pouco de sangue que restava no corpo do menino maltrapilho. E ele esperava que o banquete caótico durasse muito tempo, o máximo de tempo possível. Só assim ele se limparia, morreria sem arrependimentos, sem medo, sem pecados. Abriu os braços e se entregou.
A multidão chegou. Com os olhos fechados, o menino sentia a presença de todos aqueles fantasmas, demônios e espectros ao seu redor. O bafo quente, os sons ininteligíveis, o arrastar dos pés na terra seca, o cheiro de ausência. Eles o estavam cercando, talvez para impedir com que ele fugisse, ou talvez para que todos tivessem acesso a um pedaço do seu corpo. Ele tremia.
Naquele momento, mesmo sem saber quais tinham sido as circunstâncias e os detalhes que o levaram até ali, o menino aceitou seu destino. E essa aceitação lavou sua alma. As razões não mais importavam, as consequências eram meros resultados de atos esparsos. Uma sequência de ações, muitas sem sentido, a maioria absoluta longe do controle dele. Não mais importava quais teriam sido as intenções dos outros. Para ele, o presente era tudo que existia. Livre de culpa, e finalmente entendendo-se sozinho e dono de seu presente, nosso menino maltrapilho abriu os olhos.