Wednesday, March 30, 2005

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eu não consigo esquecer. seria bom esquecer, deixar para trás, aceitar. mas é como se eu continuasse a viver tudo que já foi. o passado me atormenta, e tudo gira em torno de mim, me incomoda. não adianta conversar com ninguém sobre o que não conseguimos esquecer. mesmo que todos os conselhos sejam lógicos, concretos, plausíveis, não é assim que funciona. seriam apenas redundâncias. não podemos controlar, não podemos racionalizar. nossa mente vive em constante busca pela vingança. a minha, pelo menos. quero acreditar que algo esteve sempre ali, e eu não conseguia enxergar. é por isso que fico remoendo tanto, e não esqueço. pois se conseguisse achar aquela pequena peça esquecida, um peão solto, ele se tornaria rainha. mas daí nunca iria esquecer. então, o que é preferível, reviver uma mentira ou sucumbir à idealização dela?

Monday, March 14, 2005

Pigarro

Pigarreou. Foi sutil, mas pigarreava em tons tão graves que aqueles que estivessem à sua volta cessavam qualquer coisa que estivessem fazendo, embora não conscientemente, e o olhavam, esperavam. Não era como se estivessem sido chamados para alguma coisa urgente, mas aquele jeito tão singular de pigarrear simplesmente os enfeitiçava. Era sempre assim, e todos estáticos ficavam até que percebiam - menos de um segundo depois - que sim, ele pigarreara. E quando pigarreava era porque estava prestes a discursar, com sua indescritível envergadura momentânea, sua abrangência sonora, sua vermelhidão extasiante. Era clara a sua voz, eram diretas as suas frases, seguidas sempre de bruscas perguntas feitas por ele mesmo e respondidas prontamente por ele mesmo. Antecipava-se. Não deixava que ninguém o interrompesse, como assim, chutar o seu banquinho praça-sético. Modulava o volume de sua arenga quando tentavam fazê-lo. Tampouco interessava se o assunto deixara uma brecha para essa deliberação individualística, essa performance. Não importava, e não mais do que uma vez na noite a fazia. Mas desta vez o pigarrear tinha sido seguido de uma sirene, ali do outro lado da rua, e os olhos daqueles que estavam ao seu redor tinham sido mais rápidos ainda na fuga. Desequilibrado por esse súbito hiato, desesperou-se. Animados estavam os olhos dos que acompanhavam os seus. Riam-se as pupilas quando perceberam a sua instabilidade, e seu erre-ê-eme descontrolado, como um paraquedista que em pleno salto descobre-se sem pára-quedas. Em seu desespero criou o único ardil que conseguiu, e quando foi pigarrear, arrotou.