fim.
quando eu era apenas um projeto de gente, muitos anos atrás, não queria ser um super-herói. eu não queria conseguir voar, ficar invisível, me tranformar em outras coisas, ler pensamentos, atirar raios dos olhos ou ter força sobre-humana. eu queria crescer e ser responsável, criar uma família concisa, ter alguns filhos, ser chefe de um monte de gente, mandar nesse tanto de gente, ser alguém no mundo, ter poder, ser reconhecido e admirado. eu nunca criei nenhum problema, para ninguém, era um ótimo filho, irmão carinhoso, neto presente e aluno responsável. eu não voltava pra casa sujo de lama, não me machucava, não emburrava. quando tinha doze anos, meu pai resolveu me levar ao circo. eu não queria ir, mas obviamente não reclamei nem discordei, e fui. foi um espetáculo doloroso. a bagunça de tudo me dava calafrios. os animais, sujos e visivelmente infelizes, os trapezistas apáticos, a imundície do picadeiro. mas os palhaços eram o que mais me incomodava. não era engraçado se fingir de palhaço. se você se finge de palhaço, você é um palhaço. as cores, a fantasia, tudo era pra mim um retrato grosseiro do inferno mais palpável que eu conhecia: a desorganização. e foi então que eu rejeitei minha condição pueril e rechacei minha inocência. me tornei um adulto, e previ tudo o que eu faria, tudo que minha vida seria, passo a passo.
eu cresci, e alcancei tudo que almejava. construí um império particular, hermético, impenetrável. trancado dentro dele, eu fabriquei minhas vestes reais, minha coroa, e um trono. alheio a todos, ou com medo de todos, cumpri com o planejado. tudo correu exatamente como eu esperava. todos os prazos foram cumpridos, não havia segunda opção, nem válvulas de escape. sabia que tudo daria certo, tudo seria exatamente como eu tinha detalhadamente delineado. e também sabia que porta abrir quando as crises, que foram também previstas e estudas, aconteceram. nunca houve meio-termo, nunca um imprevisto aconteceu. tudo perfeito.
ou pelo menos era o que eu pensava. foi no ápice de tudo, no exato momento de meu triunfo, que tudo acabou. quando as paredes desmoronaram, como se fosse tudo um gigante castelo de areia, olhei ao meu redor, estupefato, e vi que estava sozinho. abri os braços e olhei para cima. e pela primeira vez vi o céu de chumbo que pesava sobre mim. e o peso era insuportável.
chorando e vendo as cinzas da minha vida se transformarem em lama, percebi que meu único mérito tinha sido conseguir aguentar por tanto tempo aquela ilusão.
...
velho e desgastado, olho pra trás e vejo que não sonhava, nunca sonhei. o que eu fazia era planejar, meticulosamente, a minha solidão futura. minha vida é um vazio criado por mim mesmo, querendo camuflar o fato de que eu poderia não dar certo. e não dei certo, e nem tenho mais tempo de dar certo, porque fui certinho demais. não me arrisquei em nada, e dexei passar tudo pelo simples medo de falhar. e acabei falhando na vida.
imbecil e ingênuo que era, achava que a felicidade consistia em ter tudo, cada coisinha ordenada em seu lugar, etiquetada, impecável. estava completamente errado, e já era tarde demais. como ser feliz se não há nada a almejar? borges escreveu que ser imortal é irrelevante, pois é simplesmente ignorar a morte. todos os animais 'irracionais' são imortais. saber-se imortal é que são elas. esse é o retrato errôneo da felicidade: ter tudo. quando se tem tudo, nada importa. não há ambição, não existe movimento. a vida se esvai.
não culpo ninguém por isso. não acredito em destino, nem em reincarnação. é só isso que existe para mim, a constatação do meu fracasso. por conseguinte, é isso que existe, pois o mundo só existe a partir de mim. a ironia é que o mundo que só existe para mim não pode ser moldado por um idoso desdentado, solitário e infeliz. crianças são as únicas com poder o bastante para moldar seus mundos. mas claro que elas não sabem disso, e tentam planejar, ao invés de sonhar.
fui engolido pelo buraco que eu mesmo cavei. agora é hora de morrer. e por favor, não quero rever minha vida nos meus momentos finais. que eu simplesmente desapareça, sem deixar vestígios. adeus.
eu cresci, e alcancei tudo que almejava. construí um império particular, hermético, impenetrável. trancado dentro dele, eu fabriquei minhas vestes reais, minha coroa, e um trono. alheio a todos, ou com medo de todos, cumpri com o planejado. tudo correu exatamente como eu esperava. todos os prazos foram cumpridos, não havia segunda opção, nem válvulas de escape. sabia que tudo daria certo, tudo seria exatamente como eu tinha detalhadamente delineado. e também sabia que porta abrir quando as crises, que foram também previstas e estudas, aconteceram. nunca houve meio-termo, nunca um imprevisto aconteceu. tudo perfeito.
ou pelo menos era o que eu pensava. foi no ápice de tudo, no exato momento de meu triunfo, que tudo acabou. quando as paredes desmoronaram, como se fosse tudo um gigante castelo de areia, olhei ao meu redor, estupefato, e vi que estava sozinho. abri os braços e olhei para cima. e pela primeira vez vi o céu de chumbo que pesava sobre mim. e o peso era insuportável.
chorando e vendo as cinzas da minha vida se transformarem em lama, percebi que meu único mérito tinha sido conseguir aguentar por tanto tempo aquela ilusão.
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velho e desgastado, olho pra trás e vejo que não sonhava, nunca sonhei. o que eu fazia era planejar, meticulosamente, a minha solidão futura. minha vida é um vazio criado por mim mesmo, querendo camuflar o fato de que eu poderia não dar certo. e não dei certo, e nem tenho mais tempo de dar certo, porque fui certinho demais. não me arrisquei em nada, e dexei passar tudo pelo simples medo de falhar. e acabei falhando na vida.
imbecil e ingênuo que era, achava que a felicidade consistia em ter tudo, cada coisinha ordenada em seu lugar, etiquetada, impecável. estava completamente errado, e já era tarde demais. como ser feliz se não há nada a almejar? borges escreveu que ser imortal é irrelevante, pois é simplesmente ignorar a morte. todos os animais 'irracionais' são imortais. saber-se imortal é que são elas. esse é o retrato errôneo da felicidade: ter tudo. quando se tem tudo, nada importa. não há ambição, não existe movimento. a vida se esvai.
não culpo ninguém por isso. não acredito em destino, nem em reincarnação. é só isso que existe para mim, a constatação do meu fracasso. por conseguinte, é isso que existe, pois o mundo só existe a partir de mim. a ironia é que o mundo que só existe para mim não pode ser moldado por um idoso desdentado, solitário e infeliz. crianças são as únicas com poder o bastante para moldar seus mundos. mas claro que elas não sabem disso, e tentam planejar, ao invés de sonhar.
fui engolido pelo buraco que eu mesmo cavei. agora é hora de morrer. e por favor, não quero rever minha vida nos meus momentos finais. que eu simplesmente desapareça, sem deixar vestígios. adeus.